O Homem Peixe – Prosa Fantástica.
PARTE I
Desde o pulo do viaduto, da morte no asfalto, perto do teatro
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onde eu apresentava mais uma peça anti horror nazi-facista, comecei a comer peixe em todas as refeições. De manhã comia peixe cru. Ainda salgado. Cortava em fatias, tomava cuidado com a espinha e engulia,acompanhado de água de coco. Só um pouco de sal marinho. Eu deveria ter percebido os sinais. Vivia junto. Sim, deve ter havido sinais.
Logo após a cremação fuipara casa e recusei as companhias chorosas que se ofereceram. Entrei no quarto e fui para a cama. Creio que dormi umas dez horas seguidas. O tempo não me importava. Sabia que não mais haveria a hora do jantar, conversas sobre tudo e nada, o vinho. O suicídio dele permitiu-me uns dias longe do trabalho que me dava a sobrevivência. Nojo! Além da morte, o nojo. O asco da vida. Eu me sentia completamente vazia. Já não ligava mais a TV, antes mesmo do salto. Nojo! Assim fiquei enojada e inanimada mais dois dias. Eu não tenho nenhuma vocação para a morte. Portanto, restava-me o nojo, o asco. Anterior ao suicídio. Dele.
Sob torpor levantei, juntei meus trocados e comecei a vagar. Resolvi buscar pelos sinais. Ao ver um peixe empalhado, urgiu o primeiro sinal e imagens rápidas passaram na minha mente. Prendi
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uma com o máximo de vontade possível e vi um peixe suavemente nadando numa inconformidade de quem nunca chega, em coitos ao léu nas profundezas do oceano. A imagem se foi. O maior prazer dele era cozinhar peixes na panela de pedra. Sua especialidade. O assado era minha especialidade.
Naquele dia comprei o peixe que ele faria, conforme combinado, mas como demorou a chegar, resolvi eu mesma fazê-lo. Afinal chegou. Olhar estranho. O peixe estava pronto. Jantamos e conversamos muito, como sempre. Aí lembrei do olhar estranho e da demora para chegar. Deve ter sido o primeiro sinal. Por que não percebi? Talvez porque pouco me importava com o que ele fazia quando longe de mim. Ele simplesmente não existia nesses momentos.
A cidade congestionada refletia os carros no vidro dos prédios. Morávamos em plena Avenida Paulista. Em edifício tombado, de persianas azuis e eu me sentia muito feliz. Tinha trinta e cinco anos e ele vinte e oito. Estava falando em abandonar o Direito. Cada vez ele ia menos ao escritório e eu mais ao teatro, onde ensaiava Brechet, Mãe Coragem, todas as noites. Durante o dia trabalhava
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numa rádio e a odiava cada dia mais. Era obrigada a ouvir os comentários políticos tendenciosos dos velhos jornalistas do tempo da ditadura. Felizmente eu era a responsável apenas pela parte musical, embora também não pudesse colocar as músicas que me agradavam mais. Enfim! Graças a esse trabalho eu podia morar na kitch com o Pedro.
Como um zumbi eu parasitava ora pelo Mercado Municipal, ora perambulava pelo Parque Dom Pedro, ora pela Praça Roosevelt, ia até a Praça da República, antes parava no Copan, entrava e subia as rampas dos andares, até chegar no terraço e avistar a cidade lá de cima. Buscava uma resposta. Subia a Consolação a pé, em meio ao barulho dos automóveis e voltava para casa. Vasculhava tudo no pequeno espaço. As roupas de Pedro inertes. Dois ternos, uma calça safari, dois jeans e muitas camisetas. Algumas bem velhas que ele resistia em se livrar. Nenhuma carta. Um dia encontrei no fundo do armário uma caixa de papelão.
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Coloquei-a em cima da cama e a abri. Dentro muitas conchas de vários tamanhos e de diferentes cores. Sem cheiro. O mar há muito se fora delas. Seria isso um sinal? Lembrei-me da inúmeras conversas que tivéramos, particularmente de uma fala em tom confessional. Disse-me que fora um catador de conchas, quando menino. Não fiz nenhum comentário, porque não queria entristecê-lo, sabia que sua mãe fora assassinada. Pelo pai. Pedro era menino nessa época. Quando veio morar comigo, sentiu-se na obrigação de me contar. Uma vez e nunca mais. Mas o olhar estranho, oco, de peixe morto, ao me contar, não esqueci. Era o mesmo olhar do dia que chegou tarde e não fez o peixe. Afaguei as conchinhas e guardei a caixa no fundo do armário novamente, como se fosse um tesouro de muito valor. Algo intocável!
Súbita uma vontade de não estar mais ali. Naquele quarto sala. Naquela avenida. Na cidade cheia de matizes, odores, solidões, cimento. Resolvi refazer o caminho do olhar estranho, da dor cravada na alma dele. Parti. Fui a pensar o que faria, por onde começar. Na travessia a barco até a ilha já tinha um plano esboçado. Aportei e, ao sentir meus pés descalços na areia, senti
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descalços na areia, senti certeza absoluta que ali desvendaria o escuro do estranho olhar.
Fui procurar o pai de Pedro. O nome dele era Inácio, pescador mor da comunidade, que já não via mais muitos peixes nas redes. Apresentei-me. Seu Inácio, um homem forte, bonito, rude, olhos cor de mel, de uns cinquenta anos de idade. Rosto impassível ficou me fitando. Contei-lhe da morte do filho. Virou-me as costas e me mandou embora. Fui, pois não queria intimidá-lo. Iria com calma, até descobrir o que acontecera naquele dia do assassinato. Pedro parecia-se com ele. Procurei um local barato para me hospedar. Encontrei um quarto nos fundos de um bar. Apesar do vozerio dos homens jogando sinuca e bebendo até cairem, dormi. Parece que a única diversão naquele pedaço de areia era o tal bar.
Logo cedinho fui ao banheiro do lado de fora, lavei-me como pude na pia velha e de torneira enferrujada e saí para explorar a ilha. Percebi que estava com muita fome e que não havia comido nada há mais de vinte horas. O bar estava aberto.
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Tomei um café que, surpreendentemente, estava muito gostoso. Comi dois ovos cozidos, que soube que eram fresquinhos. As galinhas do dono do bar haviam acabado de botar. Ele morava ali ao lado. Um senhor simpático, tinha um filho que estava estudando engenharia numa cidade do interior e ele havia vindo do Espírito Santo, depois da aposentadoria como funcionário público. Fora um agente fiscal. Morava com a esposa, um filho mais velho, desempregado, casado, com dois filhos. Seus netos. Esse já era seu segundo casamento. Tinha outro filho do primeiro casamento e mais três netos. Moravam nos Estados Unidos. O filho era caminhoneiro lá. Viviam bem. Perguntei há quanto tempo estavam ali. Só cinco anos.
Sai para explorar a ilha. Costumava ficar cheia de mochileiros nos finais de semana, em busca de simplicidade. Mas era terça feira. A vida de Pedro despencada no asfalto começara ali. Na areia logo encontrei um pescador, preparando o barco para se lançar ao mar. Ele já tinha uma certa idade e pensei que devia se lembrar de uns vinte anos atrás. Ao lhe perguntar sobre o assassinato de mulher do Seu Inácio, os dois rapazes que o acompanhavam se
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acompanhavam se entreolharam e continuaram seus afazeres de cabeça baixa. O pescador perguntou-me se eu era jornalista. Sim, lhe respondi, mas não estava ali a trabalho e não fora por isso que fizera a pergunta do tempo passado. Então por que? Por que eu tinha uma amiga casada com um rapaz que lhe contara uma história e eu queria conferir se era verdade – menti.
Moça, não tenho nada para falar. O único que sabe o que realmente aconteceu é Seu Miguel, mas esse se recolheu num silêncio sobre esse assunto desde então, que ninguém consegue arrancar uma palavra dele. Se quiser digo onde ele mora, é ali ó, mas já aviso: não vai adiantar. Quem é Seu Miguel? É o pescador que viu ela pela última vez. Tão bonita. Nunca vi mulher mais bonita do que aquela. É verdade que Seu Inácio a matou? - perguntei de sopetão. O pescador fechou a cara, virou-me as costas, empurrou o barco e entrou no mar, junto com os ajudantes.
Fui resoluta à casa do Seu Miguel. Lá chegando logo me apresentei como nora do Seu Inácio e contei que seu filho havia se
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matado. Limitou-se a me olhar detalhadamente, da cabeça aos pés. Nenhuma expressão marcada no rosto rude daquele homem, de barba, pele bronzeada e aparentando muita idade. Lembrei-me do Velho e o Mar. - Vou sair para pescar. - Posso ir junto? - Não! Mulher afasta os peixes. - Quando o senhor voltar, poderemos conversar? - O que? - Sobre o que aconteceu com a mãe do Pedro. Pedro. Nome que pensei para meu primeiro filho, desde adolescente. Não tive nenhum ainda. Terei. Em compensação logo que ouvi o nome do rapaz me apaixonei. Pedro... - Melhor não mexer nisso moça. Parece que vi uma sombra nos olhos do homem. Os olhos azuis claros, subitamente ficaram escuros. Ou teria sido só impressão?
Não sei bem porque, senti-me possuidora de um tesouro. Aquele homem envelhecido pelo sol, sal e mar passou-me sensação de paz. Resolvi ficar por ali até que ele voltasse do mar. Lá pelas dez horas da manhã voltou. Barco cheio de peixes. Sozinho. Mais tarde contou-me que sempre pescava sozinho. O velho e o mar – pensei. Outro velho, outro mar. Moradores o esperavam na praia e ele
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distribuiu os peixes. - Ué! O senhor não vende os peixes? - Não respondeu. Porém pareceu-me óbvio que não deveria vendê-los.
- Podemos conversar agora? - Não. - Por que? - O mar pode se revoltar igual àquele dia, disse-me. Encerrou-se. Só me restava voltar ao meu quartinho no fundo do bar, buscar algo para comer e dormir. Inconformada. Fiquei a pensar se não haveria mesmo alguém que lembrasse do acontecido.
Acordei com fortes batidas à porta. Trôpega, sem mal abrir os olhos fui até a porta. Uma bela moça, assustada, fez-me sinal de silêncio, entrou, fechou a porta e colocou o ouvido nela. Silêncio. Eu curiosa e um tanto apreensiva, observei-a: "linda!" - pensei. Pareceu-me frágil, etérea e ao mesmo tempo com uma força e dignidade que vinham de muito longe. Vestia uma túnica azul, parecida com uma que minha mãe usava quando eu era criança. Meio hippie. Os cabelos eram negros e cacheados. De repente, vi algo familiar nela. - Quem é você? - perguntei. - Sou irmã do Pedro. Ouvi sua conversa com meu pai. Vá embora daqui. - Por que? - Você está correndo enorme perigo – Como assim? Eu só
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tinha cinco anos quando minha mãe morreu. Mas lembro bem dela e da paixão do meu pai por ela. Pedro cresceu achando que ele a matou. Eu sei que não. - Como sabe? - Eu vi a morte dela. Foi um peixe homem que saiu do mar e a arrastou para o fundo das águas. O corpo foi encontrado no dia seguinte preso às rochas. - Você não contou o que viu? - Contei, mas ninguém acreditou em mim. Disseram que era imaginação de criança. Pedro também era criança – eu disse. - Sim, mas ele dormia. Acordou com a polícia prendendo meu pai, que foi solto logo depois, por falta de provas. No entanto ele acreditou na versão da polícia, que dizia que "apesar da falta de provas, você não nos engana". Pobre Pedro, pobre irmão. Foi morar com uma tia em São Paulo aos dez anos, depois que meu pai desistiu de tentar fazer com que ele voltasse a falar e olhar para ele. Nunca mais vi Pedro sorrir. Após a morte de mamãe, limitou-se a falar somente o necessário. Entrava e saía de casa sem uma palavra. - Você o viu depois que ele foi embora? - Só duas vezes, quando ele fez dezoito anos e entrou na Faculdade e no casamento da minha prima, há uns cinco anos. - Ele falou com
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você? - Sim, mas como um estranho. Bem formal e não perguntou do nosso pai. Agora morto, tão jovem! Acho que nunca superou a morte de mamãe. Voltou a dizer: - vá embora, você corre grande perigo e saiu apressada. Aí me dei conta que nem perguntei seu nome. Só me restava banhar-me e sair em busca do perigo que eu corria.
"Um peixe homem" – o que será que ela quis dizer? Seria um mergulhador? De qualquer forma agora eu estava mais decidida do que nunca a resolver o mistério do assassinato de Maria.
PARTE II
A tarde estava chuvosa, mas saí a andar pela praia, pois nada dava para fazer naquele quarto só com cama, um criado mudo, uma cômoda de gavetas emperradas com um espelho na parede manchado, que mal refletia minha imagem.
Em minha direção vinha o jovem cabisbaixo que encontrei junto ao pescador ontem de manhã. Parou, sem me encarar e disse - ele só aparece uma vez por ano, na maré cheia e no dia da grande luta.
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Tem sido assim desde a morte de Maria. Vem e chora. Constrói um castelo de areia, chora mais e volta para o mar. Continuou andando. Dei meia volta e corri atrás dele. Continuou a andar, apressado. Quase gritando perguntei: - quem? de quem você falou? - do homem peixe, disse-me. - Não entendo! - Não entendo! - páre – gritei. - quando ele vai aparecer de novo? Quando será a grande lua? Como ele é?
De nada adiantou minha angústia e minhas perguntas. Foi-se fechado em silêncio. Resolvi que deveria ir atrás da irmã de Pedro. Ela vira o peixe homem. Devia ser fácil encontrá-la. Devia morar com o pai.
Voltei à casa do Seu Inácio. Na verdade, um casebre de madeira no meio de um matagal fedido, em cima de um mangue. Bati e surgiu um homem mal humorado. - que que você quer aqui? - falar com sua filha. - que filha? - O senhor não tem uma filha? - Tive, morreu dias depois da mãe. Agora suma.
Saí de lá a refletir porque não havia me interessado mais pelo passado de Pedro. Como Pedro chegara a cursar universidade, a
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viver em São Paulo, parecer-se hipster, curtir as mesmas coisas que eu lá nascida e crescida, filha de pais intelectuais? Eu, cidadã de carteirinha, engolida pelo maldito sistema, da cabeça aos pés, uma garota urbana? Gerada no final da Ditadura Militar e desembocada após o sonho terminado? Não entendia nada, mas intuia algo muito estranho. Intuia que estava na hora de perder a racionalidade. Naquela ilha eu sabia que passado era assunto morto. Como Maria que se foi para o fundo do mar.
Os dias se passavam e nada acontecia. O mais estranho de tudo é que eu não estava aborrecida e quase não me lembrava mais da minha vida em São Paulo. Aquele lugar, despojado de tudo dava-me a sensação de leveza, algo que antes não existia em mim. Mas meu dinheiro já estava acabando e a licença de um mês na rádio também. Era a única coisa que vez em quando arranhava minha mente.
Escutei batidas leves na porta. Já deitada, lendo o único livro que eu trouxera e decidira reler, não me levantei, torci que tivesse sido apenas impressão - o vento. Novas batidas. Tão leves quanto antes.
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Pareciam de uma criancinha. Desta vez a curiosidade foi maior e fui ver. Deparei-me com a irmã de Pedro. Entrou rapidamente e fez sinal de silêncio. Olhos baixos. Linda! Ôh menina linda! – pensei com meus botões. Mil coisas se passaram na minha cabeça, mas fiquei quieta, a aguardar. Após uns quinze minutos, falou-me: - meu pai me deixa presa em casa o dia todo, mas lá pelas nove da noite ele já caiu de sono de tão bêbado, que se esquece de mim. Nessa hora consigo sair. Ele ficou assim desde que minha mãe foi para o mar.
- Conte-me. O que aconteceu naquele dia? - Eu tinha cinco anos, vi minha mãe sair de casa. Meu pai e meu irmão dormiam. Eu tivera um sonho e acordei, por isso ouvi o barulho da porta. No meu sonho eu conversava com um peixe grande e ele sorria. Ele disse: - você vai ficar sozinha, mas não tenha medo nunca, porque você vai ganhar a proteção do Peixe Homem. Então segui minha mãe e vi ele saindo do mar. O Homem Peixe.
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- Como ele era? - Grande, grande e azul. Fiz vários desenhos. - Você trouxe? - Não. Meu pai sempre deu sumiço em todos eles e me proibiu de desenhá-lo. Disse-me e diz até hoje que sou louca. Sei que não sou. Eu não tinha ali material nenhum para que ela pudesse desenhá-lo. Então decidi que iria à escola mais próxima, na ilha mais próxima, conseguir lápis de cor e papel, assim que amanhecesse. - Como é teu nome? Simone – respondeu. Agora preciso ir. -Você vai voltar? - Sim.
Intrigada com a visita de Simone e com suas palavras achei que deveria estudar mitologia mas, ali naquela ilha, nem internet, nem biblioteca. Nada. Como se possível fosse que tão próxima à capital houvesse um lugar assim. Eu mesma já começava a duvidar que existisse. Ainda por cima um Peixe Homem Azul!!! Já não conseguia nem me lembrar como chegara lá.
No entanto, acordei cedinho e fui com as crianças, que estudavam na outra ilha, no barco que as levava todos os dias. Pelo jeito já havia corrido pelo lugarejo o motivo da minha presença ali na ilha.
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Todos me olharam e continuaram em silêncio, como se eu fosse a anunciadora de uma desgraça, ou talvez a desmistificadora de uma lenda. Na ilha, segui as crianças até a escola. Pedi umas folhas de sulfite e lápis coloridos. Arranjaram-me folhas de rascunho e restos de lápis de cor. Agradeci e fiquei sabendo que haveria barco de volta à ilha, apenas na saída da escola. Às 12 horas. Fui a um pequeno restaurante que estava aberto. Por sorte havia café com leite e pão na chapa. Perguntei pelo almoço. A partir das onze horas. Reservei o meu peixe azul, especialidade da casa. Andei pelo local e perguntei sobre o Homem Peixe, - "Do que a senhora está falando moça? Não. Nunca vimos e não conhecemos nenhuma história de homem peixe". Estranho. Muito estranho.
Comi o melhor peixe da minha vida e voltei ao barco. As crianças já estavam a chegar. Parece que o mistério só existia naquela ilha perdida no planeta. Aportamos no trapiche e senti-me invisível. Atropeladamente todas as crianças sairam correndo. Por que será? – pensei. Disse-me o moço do barco: - hoje é dia do Peixe Azul? Do homem Peixe? - perguntei. Não, moça, do Peixe Azul. - Como
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assim? - A senhora não comeu peixe azul lá na outra ilha? - Sim. Comi. - Então, é isso: todos hoje só comem peixe azul marinho. Por que? - perguntei. Por que é lua cheia. A maior do ano? Não sei moça. A revelação veio como um baque assustador. Corri para o quartinho no fundo do bar. E agora? Ele aparecerá? Terá escamas e olhar tristonho? Um solitário? De escamas azuis? Irei com ele ao fundo do mar? Naveguarei nas suas costas como se ele fosse um golfinho? Ou será apenas um assassino, sequestrador de mulheres, vingador dos pescadores?
Adormeci e tive um sonho estranho: alguém bateu à minha porta. Abri-a e segui, hipnotizada, uma mulher nua, de longos cabelos, que caíam como uma cascata sobre suas costas morenas. Eu sentia meus pés descalços nas areia macia e fria da noite iluminada. A lua estava quase cheia. Havia uma canoa balouçando n'água e subimos nela. Eu não conseguia ver o rosto da mulher. Apenas suas costas e os belos cabelos. O barco deslizou mar adentro. Estava manso e límpido. DAva para ver os peixes. Brilhantes. Eram da cor do ouro.
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De repente, grande onda levantou-se e vi um homem emergindo e a gritar – Maria! Maria! Ela pulou na água e mergulhou com ele. Ou era um peixe?
Acordei e saí. Descalça. Em pouco tempo estava à beira mar. Parei e fiquei olhando aquele mar. A lua estava menos cheia que no sonho. - Moça? Ouvi um voz doce e me virei para ver quem era. Um belo jovem índio. Índio! Seus olhos e seu sorriso sobressaíam na noite. Sorri de volta – oi – eu disse. Continuou sorrindo e me disse: - ele não vai aparecer hoje. - Ele quem ? - O homem peixe - Então você vê o Homem Peixe? - Claro! Todo mundo aqui vê. - Então por que todo mundo faz mistério e não me responde nada quando pergunto? - Por que a moça não é daqui. - Como ele é? - perguntei. - Ele é triste. - Triste? - Porque você diz isso? - Sempre que ele aparece vem até a areia, deita nela e chora a noite toda. Muito triste. Depois volta para o mar. - Mas por que ele chora? - Dizem que uma vez se apaixonou por uma moça e a levou embora para o fundo do mar. Mas ela morreu afogada porque era só uma mulher. Não era mulher peixe. Desde então, todos os anos, no mês
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que ela morreu, na lua cheia ele surge. Que mês ela morreu? - perguntei. - Em maio. Faltam dois meses e a lua estará cheia e grande no final do mês. Então eu vou poder ver o Homem Peixe? - Vai, moça. Nessas noites todo mundo vem à praia e fica em silêncio. Durante o dia os peixes são muitos. Dançam nas águas. Ninguém pesca. Ninguém mata os peixes. Em respeito à dor do Homem Peixe. Dá para pegá-los com as mãos. Mas ninguém pega.
Dois meses! Eu mal tinha dinheiro para um mês! Teria que negociar com o homem do bar, com a rádio. Bem, com a rádio já sabia de antemão que não seria possível. Se é que eu já não estava fora dela! Resolvi que ficaria na ilha. Pedro nunca soube dessa história? Por que se matou? Passou a vida inteira sofrendo, achando que o pai era assassino, deixou de ver a irmã, fingiu-se cidadão de São Paulo. Fez Faculdade. Afinal, quem era esse Pedro? Advogado!? Tão desnecessário naquela aldeia de pecadores! Não importa, ele jamais voltaria a ela. Assim como eu, jornalista, tão objetiva, controlada e ainda em busca de um trabalho decente. Submetia-me ao massacre da cidade com a desculpa que precisava
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provar que eu era capaz. Mas provar? Provar para quem?
PARTE III
Naqueles dias de espera da lua cheia grande, para aparição do homem peixe, cai em melancolia. Já acordava estranhando a vida. A mim parecia que eu ficaria grudada eternamente à ilha. Os ruídos externos soavam como se estivessem à quilômetros de distância. Mergulhei no silêncio. Havia dias que emitia pouquíssimas e curtas frases. Bom dia. Boa noite. Obrigada. Até meus pensamentos ficaram silenciosos. Torpor de alma. Meus olhos não conseguiam se despregar do mar ao início da noite. Consegui com o homem do bar pagar dois meses de aluguel pela metade do preço e varrer o terreno todo dia em troca de comida. Tinha muito tempo para ficar de olho no mar. Acordava todo dia por volta das sete horas. Como não tinha fome antes das nove horas varria todo o terreno nessas duas horas, aproveitava para cortar o mato que insistentemente crescia. Nova horas tomava o café da manhã: dois ovos, banana
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amassada, café, pão com margarina. Era o que tinha. Saía quase correndo para a praia. Lá encontrava meu amigo índio sempre com um coco cheio de água me aguardando. Estendia minha canga, sentava e olhava o mar. Ali ficava até a fome bater novamente. Voltava ao bar para almoçar, dormia um pouco e quase noite voltava à praia. Até umas dez horas da noite. O silêncio era maior à noite.
Então, um dia, Simone veio desencantar esse meu silêncio de dias. Não parecia mais aquela moça assustada da última vez que a vira. - Entre – eu disse. - Acho melhor você ir embora, falou-me - Por que? - Ele vai aparecer logo e você pode se apaixonar e ir com ele para o mar e morrer afogada. - Eu!!??? Quantos anos sua mãe tinha quando morreu? - fiz a pergunta sem nem mesmo saber o motivo, mas havia uma intuição, uma mescla de curiosidade e quase descoberta. - Vinte e cinco. Vinte e cinco, repeti. A tua idade agora né Simone? Vi uma sombra de sorriso nos seus olhos. - Tô indo. Tchaú. Voltei ao silêncio. Logo ouvi umas risadinhas abafadas lá fora. Abri a porta para ver quem era, mas, fosse ou fosse quem
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fossem saíram correndo. As risadas eram de duas ou três pessoas. Entrei e fui dormir.
Eu estava cercada de gelo, numa paisagem ao mesmo tempo branca, calma e amedrontadora. Aos poucos, fui apurando os olhos, esfreguei-os e, na minha direção caminhava uma criatura que eu jamais vira. Um ser etéreo, azul claro, esguio, com cabelos longos, que iam até a cintura, num tom de azul um pouco mais escuro que a pele transparente, onde se via os caminhos percorridos por um sutil líquido, como um rio avistado do céu, a quilômetros de distância da terra. Não era um homem. Não era uma mulher. Parou à minha frente em silêncio e pude observar uma tristeza imensa nos seus olhos molhados. Estiquei as mãos para tocar seu rosto, mas não havia nada para tocar.
Acordei e Pedro dormia tranquilamente ao meu lado. O barulho dos carros na avenida anunciavam o dia. Olhei o relógio. Sete horas. Hoje entregarei o roteiro para o próximo filme. Espero que o diretor goste. – Zezé Goldschmidt.
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